Breve análise sobre a escrita de H.P. Lovecraft
- Icaro Rodrigues Melo
- 27 de mai. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 1 de jul. de 2024
Luis Felipe Conca
Este artigo pretende resumidamente explicar as características centrais das obras de H.P. Lovecraft. Para isso inicio com uma breve contextualização de quem ele foi. Howard Phillips Lovecraft era um escritor estadunidense que viveu na primeira metade do séc. XX. De família aristocrática da cidade de Providence, HPL teve uma infância abastada com amplo contato com a ciência, mitologia e literatura. Porém foi igualmente marcado por tragédias, perde o pai e o avô durante a infância por doenças mentais, convivendo com sua mãe afligida gradualmente pela loucura. Fracassando em seu sonho de estudar astronomia por causa de sua saúde e tendo perdido toda sua fortuna e não arranjando empregos. Lovecraft tornou-se absolutamente pessimista, materialista, ateu e racista. Desprezava a sociedade comercial nascente nos EUA do séc. XX, via exclusivamente na sociedade aristocrática do passado as virtudes civilizacionais. Virtudes que jamais retornarão.
Sua vasta obra é constituída de poesias, contos e novelas pertencentes aos gêneros fantástico, ficção científica e horror. Ele, através de suas histórias, também foi o responsável pela criação do gênero terror cósmico, gênero pelo qual é mais conhecido na atualidade. Primeiramente para essa análise deve-se estabelecer a base em que todas as obras de HPL se sustentam, que são: o gênero fantástico, o pessimismo, o sobrenatural como algo intrinsecamente maligno, inclusive admitido em diversas cartas escritas por ele. Quase todas suas narrativas (todas as mais relevantes e conhecidas) pertencem ao gênero fantástico (algumas mais que outras), podendo intercambiar com os elementos das formas anteriormente citadas, mas sempre tendo o fantástico como alicerce.
Mas o que é o gênero fantástico? O que o define? De acordo com Felipe Furtado, S. T. Joshi e da análise dos elementos centrais do texto escrito em 1933, intitulado “Notas quanto a escrever Ficção Fantástica” H.P. Lovecraft, há três características obrigatórias para considerar uma narrativa pertencente ao fantástico. A primeira é um ambiente comum, mundano, que servirá como uma espécie de “âncora” que sustenta a parte realista da narrativa, e que no decorrer da história será invadido pelo elemento irreal, fantástico, ou como melhor denominado por Furtado, elemento meta-empírico. Uso aqui o termo “invadido” para salientar que a unificação do real com o meta-empírico é através do domínio do elemento fantástico sobre a realidade. Porém um domínio não absoluto e não harmonioso.
O segundo elemento é o próprio meta-empírico, que consiste em um elemento de irrealidade que ressoa e, durante a narrativa, absorve o mundo real. De forma geral o elemento fantástico é constituído por um único princípio causador, ou seja, existe uma justificativa para todos os acontecimentos que não podem ser explicados pelas leis naturais e pelo pensamento realista (exemplo: um deus mitológico, um fantasma, uma maldição, etc.). Sendo também a única coisa não realista pertencente a historia. A última e não menos importante característica determinante a este gênero é a ambiguidade. Uma ambiguidade aplicada precisamente e obrigatoriamente na percepção do leitor sobre a veracidade dos acontecimentos, se as situações fantásticas descritas na narrativa são reais (dentro do universo da história) ou ocorre apenas na visão do narrador (como um delírio, por exemplo). Portanto as obras de HPL em sua grande maioria consistiam de narrativas protagonizadas por pessoas normais que vem de um mundo normal e sofrem experiências sobrenaturais aterrorizantes e enlouquecedoras e cabendo ao leitor “acreditar” se o que foi relatado aconteceu ou não.
O pessimismo encarna nas histórias, em desfechos trágicos para diversos de seus protagonistas, como também a sensação de que suas ações são insuficientes para acabar com o mal. Você pode afastá-lo, adiá-lo e até matar uma ou mais criaturas, mas a fonte maligna não pode ser eliminada. Isso também reflete na forma como o sobrenatural aparece nas histórias. O fantástico é encarnado quase sempre em seres retratados como violentos e cruéis.
Estabelecido o pilar da escrita de Lovecraft abordarei características um pouco mais específicas de seus escritos. Com esse intuito os estudiosos de HPL dividem suas produções em duas fases: a denominada ciclo dos sonhos, ou fase dunsaniana (considerada a melhor denominação por seus especialistas) abrangendo em geral as publicações de 1917 a 1925, e a outra chamada de Mitos de Cthulhu, textos de 1926 a 1937(ano de sua morte).
A fase dunsaniana é marcada pelo predomínio de contos que seguiam a tradição do horror (inspirado por Edgar Allan Poe) e de ambientes oníricos/matérias fantásticas (influência de Lord Dunsany, escritor famoso em sua época). Lovecraft aplicava nas histórias desta época as características do horror fantástico, tanto as essenciais como as satélites, estabelecidas na época. Sendo ás: o ritmo mais lento (tradicional) da penetração do meta-empírico sobre a normalidade; uma preocupação em apresentar protagonistas distintos de diversas áreas, origens e personalidades; e a existência de um plot twist no final. Esses elementos podem ser observados em diversos autores do fantástico na época, como o próprio Poe, Harry James, Bram Stoker e diversos outros.
Outro ponto que se destaca nesta primeira fase ao comparar com o Mitos de Cthulhu é a desconexão com outros contos. Praticamente não há referências de um conto em outro, são em grande parte isolados, o sobrenatural possui origens próprias para cada história. Também não há no ciclo dos sonhos qualquer intenção e ação do HPL em estabelecer uma cosmologia mítica própria. Vários dos seres sobrenaturais são diretamente ou levemente parafraseados de cultos, mitologias e folclores. No conto “Dagon” (1919) o ser sobrenatural é Dagon, um deus pertencente a mitologia filisteia, ou no caso de “Hypnos” (1923) onde o antagonista é denominado como sendo o próprio Hypnos deus grego do sono na mitologia grega. E também em “O Horror em Red Hook” (1925) onde os cultistas são mencionados adorando principalmente Lilith. Neste período Lovecraft não havia atingido sua maturidade artística, produzindo contos de horror fantástico aos moldes já estabelecidos, com histórias isoladas, e tendo variadas origem para o elemento meta-empírico.
Já a fase dos Mitos de Cthulhu é marcada principalmente pelo desapego das características auxiliares do gênero fantástico, por todas as histórias se passarem no mesmo mundo e a existência de uma cosmologia de seres sobrenaturais completamente autorais. HPL abandona a variedade de seus protagonistas, tornando-os no geral acadêmicos, que entram em contato com o sobrenatural por uma vontade dominante por respostas a mistérios que acidentalmente entraram em contato, como o protagonista de “O Chamado de Cthulhu” (1928), ou do “Sonhos na Casa da Bruxa”. Também perde o interesse (que já não era muito) de caracterizar a vida mundana. Lovecraft passa a informar logo no início que se trata de uma obra fantástica, que há o sobrenatural e em poucos parágrafos informar quem é o personagem principal e como era sua vida mundana. Portanto as histórias começam a partir do primeiro contato do personagem com o sobrenatural. Obviamente um contato pequeno, que vai instigar o personagem a continuar buscando a causa. Ainda existe um mundo normal que é invadido pelo meta-empírico, mas sua descrição é reduzida e sua deterioração mais rápida. Lovecraft possuía um profundo desgosto pelo mundanismo, desgoto em flagrante crescimento ao longo do tempo, resultando em, cada vez menos relevância na trama. Uma abordagem nomeada por Houellebecq como ataque massivo, sendo um elemento significativo que diferencia as histórias desta fase de HPL das obras comuns do horror fantástico.
Soma-se a isso a criação de uma mitologia própria com deuses específicos que aparecem em mais de uma história, monstros vindos de outros planetas e aumento do uso de vocabulário científico. Os seus seres têm suas origens voltadas para a ficção cientifica; não a magia, há poderes dimensionais; não são deuses místicos, mas entidades materiais e espaciais. As criaturas sobrenaturais comuns da época (fantasma, demônio, deuses pagãos e etc) dão lugar a seres cruéis vindos de outros planetas.
Se antes era raro a existência de um sobrenatural benigno, na segunda fase é inexistente. Suas divindades são cruéis e pavorosas. São altamente inteligentes e igualmente desprovidos de moral, como dito por Houellebecq “Nada permite supor uma transgressão às leis do egoísmo e da maldade”. Marcado pelo pessimismo de HPL em relação ao mundo, seus heróis só conseguem vitórias passageiras e o adiamento da iminente catástrofe, com alto custo pessoal, físico ou mental. Os servos perdem, mas os mandantes são apenas atrasados.
REFERÊNCIAS
DUTRA, Daniel. O horror sobrenatural de H. P. Lovecraft : teoria e praxe estética do
horror cósmico. Porto Alegre: UFRGS, 2015
FURTADO, Felipe. A Construção Do Fantástico Na Narrativa. Lisboa: Horizonte
Universitário, 1980.
HOUELLEBECQ, Michel. H.P. Lovecraft contra o mundo, contra a vida. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2020.
LOVECRAFT, H. P.. O Panteão dos Mitos. Cotia: Pandorga Editora, 2020.
LOVECRAFT, H.P. A cor que caiu do espaço e outros contos. Barueri: Camelot Editora,
2022.
LOVECRAFT, H.P. Sussurros na escuridão e outros contos. Barueri: Camelot Editora,
2022.
LOVECRAFT, H.P.. Grandes contos. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2018.
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