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Era uma vez uma leitora

  • Foto do escritor: Icaro Rodrigues Melo
    Icaro Rodrigues Melo
  • 27 de mai. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 1 de jul. de 2024

Alanis Mahara


Em vez de bolos, pães e chá, uma pilha de livros se amontoa sobre a mesa – Esses são pra você, disse minha avó, estendendo com dificuldade os livros que, postos lado a lado, poderiam ultrapassar minha altura na época. Lembro de olhar para o meu pai sem compreender a oferta desse presente, já que eu mal sabia escrever ou soletrar meu nome. Aceitei, pois seria feio fazer desfeita. Tomei o presente como um ato de confiança e tratei de acreditar que o meu eu do futuro o agradeceria com mais sinceridade, e assim aconteceu. Depois de muito tempo, descobri que alguns presentes são desafios cedidos pela vida, que nos lançam no ainda não aprendido. Uma espécie de oráculo cotidiano? Um devir? Quem sabe. O fato é que minha avó trabalhava com limpeza e os livros presenteados eram, na realidade, gibis descartados pelo filho da sua patroa – assim ela costumava chamar as moças dos bairros nobres para quem ela trabalhava. Eu estava acostumada a ganhar roupas ou brinquedos que essas pessoas ricas não queriam mais, mas os livros eram algo inédito. Muitos dos almanaques já chegaram riscados ou recortados, o que não diminuiu minha curiosidade por eles. Estirada no chão da sala, folheei um por um, apagando os rabiscos feitos a lápis para um dia poder escrever ali minhas próprias palavras.


Ao longo das semanas, senti que os livros me olhavam do canto do quarto e logo uma aflição passou a me acompanhar: era preciso aprender a ler para não perder aquelas histórias que se insinuavam para mim. Mas, diferente do que eu imaginava, o ato de ler não chegou da noite para o dia. Minhas tentativas autônomas de leitura se mostraram frustradas e eu passei a invejar toda e qualquer pessoa que pudesse ler, como se a leitura coroasse esses seres com um poder celestial. Não era raro passar diante de uma placa e acusar: “Você consegue ler o que está escrito ali?” Se a resposta viesse acompanhada de um sim, prontamente eu mostrava minha língua num ato de rebeldia invejosa.


Em uma das visitas à casa de minha avó, levei alguns desses livros com os quais ela me presenteou. Com um tom já impaciente, perguntei por que havia me dado algo que eu não podia usar “é como dar pra uma criança um presente quebrado”, argumentei. Ela pegou os gibis e convidou a mim e à minha prima a nos sentarmos perto dela. Pelo tempo de uma tarde, leu muitas histórias, até decidir me entregar uma das páginas:


“Agora você conta uma história pra gente”, disse. Após um silêncio assustado, me aproximei do livro e me deixei guiar pelas ilustrações para criar minha própria narrativa, assim, se eu não fosse uma leitura, era ao menos uma contadora de histórias. No final da contação mirabolante, minha avó acrescentou que o que eu havia feito era, também, uma espécie de leitura.


Esqueci um pouco da angústia de não saber ler para dar espaço ao que realmente importava naquele ato de observar letras e figuras: imaginar. Estou convicta que ali eu me tornei uma leitora e me aproximei de uma intimidade que só os livros são capazes de entregar. Durante a adolescência, também me lançava em desafios audaciosos: ler Faulkner para um trabalho de literatura, tentar – mesmo com muitas falhas – vencer Ulisses, de Joyce e, por fim, o mais caprichoso dos desafios: ler em um livro em uma língua que eu não domino. Essas foram tentativas de me aproximar do meu eu da infância que se intimidava com o desconhecido e com as leituras imprecisas, contanto que a imaginação fosse sempre uma aliada. Até hoje, sigo tentando vencer alguns desafios de leitura e tenho um novo público alvo que posso invejar: leitores que leram e compreenderam a Odisseia, na tradução de Odorico Mendes.


Sim, os problemas sempre se renovam.



 
 
 

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