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Sobre mim e muitas lombadas

  • Foto do escritor: Icaro Rodrigues Melo
    Icaro Rodrigues Melo
  • 3 de jun. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 1 de jul. de 2024

Bruno Oliver


Muito tem se falado sobre o fato dos livros possuírem poder elitizante sobre classes sociais e formações culturais. A escrita alfabética e as habilidades que dela surgem teriam se tornado um espelho no qual grupos sociais considerados socialmente inferiores se veem distante das elites. O aparato livro + alfabeto latino tem sido, ao longo dos anos, usado para estigmatizar àquelas sociedades que não têm a escrita como uma ferramenta dentro de sua cultura. Hoje, as pessoas que não tiveram acesso à cultura formal estariam sendo colocadas em locais de exclusão social, não só pelo fato de toda a estrutura ser através da escrita alfabética, mas sobretudo pela construção social que sugere ser vergonhoso alguém não ter adquirido o código escrito. Dessa forma, o livro teria se tornado um objeto intocado, cuja função é ser louvado. Essa relação, que distorce e aniquila seus reais poderes transformadores, pois lineariza um processo que é amplo e plural, tem sido vista e revista em diversos ambientes de debate. É muito curioso, no entanto, observar que, até mesmo na comunidade leitora das redes sociais, que supostamente celebra tudo, há um grupo de pessoas que, apesar de possuírem grande interesse em leitura (por vezes criando e consumindo conteúdos a respeito da literatura, especialmente a mainstream), algo em princípio super positivo, mas que por vezes revela a estratégia de criar um espaço de livre disseminação de formas hostis de se lidar com os livros. O discurso que muitos propagam de ler e ler cada vez mais arduamente e em um ritmo acelerado – e sempre livros maiores que os outros – é apresentado como sinônimo de inteligência e de capacitação, estabelecendo uma nova forma de constrangimento em relação aos que leem pouco ou aos que nada leem. Não se fala sobre a pluralidade de criar hábitos de leitura — sejam eles diários, semanais, mensais e também anuais, todos igualmente válidos e respeitando o processo individual —, sempre existe uma única forma que é a de absorver o conhecimento, de modo rápido e o mais eficaz possível para esse discurso.


É claro que em uma sociedade capitalista, com os valores brasileiros tão respaldados na política do neoliberalismo e neotecnicismo, os livros acabam assumindo esse papel amedrontador, o que me cerca de ansiedades toda vez que abro um livro, observo o número de páginas, respiro fundo e tento me envolver uma página por vez. Se sempre me foi dito que sábio é apenas aquele que lê – e que lê muito – como conseguirei usufruir tranquilamente duma leitura com tanta pressão me atravessando? Respiro fundo, limpo a mente e foco no que tenho a minha frente. Olho para ês autories, vejo quem são, gosto de olhar cada detalhe, a contra-capa e a cor das páginas — dar aquela cheiradinha de praxe nos livros físicos —, gosto principalmente de ler as dedicatórias, se sou curioso demais até pesquiso a respeito. Tudo para entrar ali, naquele pequeno universo e tentar curtir um pouco sobre aquelas palavras amontoadas que, de um jeito ou de outro, despertaram-me o interesse de experienciá-las. Focando naquele monte de pequenas coisas que me causam prazer, posso esquecer um pouco de tudo de ruim que socialmente o livro representa, posso me sentir em paz ao invés de ansiedade ao olhar quantas páginas faltam, ler cada página, ou melhor, ler cada palavra, sem pensar no que vem depois e me entregando a essa experiência.


Quando leio, ouço as vozes dos professores e tudo que vi em artigos sobre teorias linguísticas e conceitos literários. Penso na estrutura, na divisão de parágrafos, na progressão textual, na escolha discursiva do léxico... e de repente, eu não leio mais por prazer. Na verdade, como se lê mesmo? Desaprendo e reaprendo quase que mensalmente. No final, não escapei da ansiedade, não li o que queria e nem entendi muito bem os conceitos da faculdade. De certa forma, me sinto encurralado com tantos pensamentos emitidos por todos e por mim mesmo. Talvez seja mesmo verdade: talvez a escrita alfabética e as habilidades que dela surgem teriam se tornado um espelho no qual grupos sociais considerados socialmente inferiores se veem distante das elites. E a única maneira de combater isso é escrever sobre isso.


Eu escrevo.




 
 
 

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