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VOCÊ PODE NEGAR O “ACONTECIMENTO”, MAS JAMAIS IMPEDI-LO DE ACONTECER

  • Foto do escritor: Icaro Rodrigues Melo
    Icaro Rodrigues Melo
  • 17 de jun. de 2024
  • 3 min de leitura

Atualizado: 1 de jul. de 2024


Alanis Mahara


“O tempo deixou de ser uma sequência insensível de dias [...] Tornou-se uma coisa sem forma que avançava dentro de mim e era preciso destruí-la.”, escreve  Annie Ernaux em “O Acontecimento”, uma curta narrativa pessoal que relata sua decisão de abortar quando a prática ainda era condenada na França. A obra, publicada pela primeira vez em 2000, chegou ao Brasil em 2022 pela editora Fósforo, refletindo um contraste entre a França dos anos 60 e o Brasil atual, no qual pessoas que engravidam ainda são condenadas e afastadas da possibilidade do aborto seguro. 


Em 1963, quem interrompesse uma gravidez na França encontraria, perante a justiça, uma punição de até 20 anos de prisão. A prática tornou-se legal no país em 1975, sob pressão de um documento chamado de “Manifesto das 343” assinado por mulheres que  admitiram ter interrompido ilegalmente uma gravidez. Mas, em 63, a realidade assim seguia: não somente quem abortava respondia criminalmente pelos atos, mas também as parteiras, médicos, farmacêuticos e todos aqueles que facilitavam o acesso ao aborto clandestino. 


Nesse cenário, Annie Ernaux, uma jovem estudante de 23 anos à época, vivenciou “O Acontecimento”, essa situação sem nome, sem enquadramento, mas sufocante como um fardo acumulado dia após dia. O caminho para abortar parecia largo e intangível e, segundo a autora, todas as informações para interromper a gravidez parecem intencionalmente guardadas. “Entre o momento em que a moça descobria estar grávida e aquele em que não estava mais, havia uma elipse.”, diz a escritora. 


Com o avanço da gestação, Annie toma uma atitude desesperada: “Na manhã seguinte, me deitei na cama e introduzi com cuidado a agulha de tricô no meu sexo. Eu tateava sem encontrar o colo do útero e parava logo que sentia dor.”, pontua a autora. Como em outros dos livros de Ernaux, não há conforto durante a leitura; aquele que se coloca diante das páginas de “O Acontecimento” precisa enfrentá-las e aceitar suas palavras ressoando duramente sobre as nossas realidades. 


Quem já se deparou com a escrita de Ernaux constata sua capacidade de anotar a vida e construir significados para o que não somos capazes de nomear. Não por acaso, nesse relato guiado pelo tema tabu do aborto, a autora não encontra registros sobre o tema para além de algumas notas em livros de medicina, o que não basta para explicar essa cisão chamada de “acontecimento”. 

   

No mesmo ano em que a França inscreveu oficialmente o direito ao aborto na sua Constituição, o Brasil propõs ao congresso Projeto de Lei 1904/24, do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, que equipara ao homicídio o aborto de gestação acima de 22 semanas, tornando ainda mais distante o acesso ao aborto seguro, mesmo em casos em que a prática é validada por lei, como em situações de estupro. Esses contrastes evidenciam o abismo a ser enfrentado no Brasil sobre o aborto seguro e gratuito. 


O acontecimento, por fim, parece dizer: nós existimos, nós estamos aqui; e estamos morrendo pela negligência do Estado. Annie decidiu pela interrupção da gravidez. Em nenhum momento o livro questiona seu posicionamento. Convicta, a autora encontra medidas para ir até o final da sua decisão. Como ela, muitas se encontram na mesma situação que preenche o livro. E, por fim, a síntese da leitura ecoa em uma direção: a lei não pode impedir que o aborto aconteça, ela pode, tão somente, impedir que ele ocorra de forma segura.


 
 
 

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